quinta-feira, 23 de agosto de 2012

António Leite – Capitão nas praças do Norte de África e Senhor de Arenilha



 

António Leite foi o protótipo do cavaleiro português da era de quinhentos que, através da carreira das armas e dos serviços prestados à Coroa em Alcácer Ceguer, Azamor e Mazagão, viu os seus esforços serem coroados com honras e títulos. Oriundo de uma família do Porto ligada à actividade mercantil e com vínculos à Casa Real, foi feito cavaleiro e nomeado contador de Azamor em 1514.

Com efeito, a presença militar em Marrocos implicou, desde logo, a fixação de oficiais régios, muitas vezes pertencentes à pequena nobreza, para desempenhar cargos de chefia militar e administrativa nas praças do Algarve Dalém. António Leite, que mais tarde viria a ser Senhor de Arenilha, foi um desses capitães que, bem ao espírito da época, procurou a promoção social através da carreira das armas no teatro de guerra hostil e sangrento que era a cruzada portuguesa em Marrocos. Entretanto, em 8 de Fevereiro de 1513, pouco antes da conquista de Azamor e da construção do castelo de Mazagão, fora criado um couto de homiziados em Arenilha, através Carta de privilégio concedida por D. Manuel. Com o passar do tempo, António Leite foi ascendendo na hierarquia militar, estabelecendo relações com outros oficiais da Coroa e com figuras importantes, pertencentes às forças mouras. É neste contexto que foi nomeado capitão de Mazagão, em 1516, cargo que exerceu com as devidas intermitências até 1535. Tal como podemos acompanhar pela Crónica Militar desta praça, o seu governo foi assinalado por grandes provas de competência e valentia, tendo mesmo desbaratado em Dezembro de 1521 um xeque da região da Enxovia e resistido ao cerco que o rei de Fez pôs a Mazagão em finais de 1525. Foi também capitão de Azamor de 1529 a 1530, e de 1537 a 1541, tendo igualmente demonstrado provas da sua competência. Aquando da Reformulação da Estratégia Norte Africana de D. João III, o seu profundo conhecimento da realidade marroquina levou-o a desempenhar um importante papel nas negociações com o soberano de Fez, no contexto do avanço dos xarifes vindos do sul marroquino. Em 20 de Agosto de 1542, como recompensa pelos serviços prestados à Coroa, D. João III atribui-lhe o cargo vitalício de Senhor de Arenilha, ficando incumbido de povoar e proteger a margem portuguesa do Guadiana das incursões da pirataria berberesca.


Jornal do Algarve, Nº 2846, Outubro de 2011, p.14.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

O Início do Domínio Islâmico no Algarve (Foi há 1300 anos)




O dia 31 de Julho do passado ano de 2011 assinalou os 1300 anos da batalha de Guadalete entre o exército visigodo do rei Rodrigo e as tropas e berberes e árabes lideradas por Tarik Ali Ibn Zyad. Com a derrota visigoda os muçulmanos acabaram por se estabelecer na Península Ibérica através de conquistas militares e de tratados de capitulação. E o Algarve? A partir de quando terá efectivamente ficado sob domínio islâmico?

Segundo a historiografia tradicional, depois de Tarik Ali Ibn Zyad atravessar o Estreito de Gibraltar e vencer a batalha de Guadalete, em 711, foi a vez do próprio governador do Norte de África, Musa ibn Nusair, deslocar-se ao al-Andaluz com um exército de cerca de 18000 soldados, desta vez composto na sua maioria por árabes. Era então iniciada a conquista da Andaluzia ocidental e do sul da Lusitânia? Segundo a arqueóloga Teresa Gamito, em 718 já estavam conquistadas todas as regiões da zona Ocidental da Andaluzia, inclusive “as cidades de Ossónoba, Balsa, Lacóbriga e Ipses”. Contudo, o mais provável é que as cidades da zona ocidental da Andaluzia como Balsa, Lacobriga, Ipses e Ossónoba, tenham sido anexadas logo depois de conquistados os núcleos urbanos hispano-visigodos de maior importância, como Sevilha, tomada pela força em Julho/Agosto de 712. De resto, este é um assunto meticulosamente abordado por José Garcia Domingues em “Ossónoba na Época Árabe”. Da mesma forma, também Helena Catarino – talvez por influência de Domingues - refere ter sido por esta altura que Abd al-azir, filho do governador do Norte de África, Musa ibn Nusair, terá conquistado definitivamente o Algarve. Contudo, novas interpretações têm surgido nos últimos tempos. Segundo “Fath al-Andalus y la incorporación de Occidente a Dar al-Islam”, do catedrático Ahmed Tahiri, não terá sido Musa ibn Nusair a conquistar Sevilha pela força, mas sim Tarik Ali Ibn Zyad, mediante um acordo de capitulação onde estaria previsto o pagamento de um tributo.

Ora, a verdade é que a História é frequentemente escrita pelos vencedores, ou pelo lado mais forte… Sendo Tarik Ali Ibn Zyad um subalterno de Musa ibn Nusair, não seria digno se aquele ficasse com toda a glória, pelo que, segundo as fontes, terá sido Musa ibn Nusair e o seu filho a submeter a kura de Ossónoba (designação que corresponde à actual região Algarve). No entanto, estarão as fontes correctas? Ou terão as crónicas sido redigidas de acordo com as conveniências políticas de Musa ibn Nusair?

Seja como for, longe vão os tempos em que acreditava numa conquista sangrenta do Gharb al Andaluz. De um modo geral, as populações cristãs da Península Ibérica que foram submetidas pelos muçulmanos podem ser divididas em dois grupos: as conquistadas pela força das armas, principalmente as da planície andaluza; e as que na sequência dessa conquista, vendo a impossibilidade da luta, se renderam por capitulação. É provável que a conquista da cidade de Ossónoba - principal núcleo urbano da região até à conquista islâmica do al-Andaluz - se tenha dado através de negociações entre os governadores hispano-godos e os invasores muçulmanos, sem recurso à força. Fundamentamos esta teoria na medida em que muito dificilmente as forças da cidade conseguiriam resistir ao exército de Abd al-azir (ou até mesmo de Tarik). Por outro lado, data de 713 o mais antigo documento hispano-muçulmano conhecido: o tratado de Teodomiro, pelo que se torna verosímil que outras cidades hispano-godas, como Ossónoba, tenham encetado semelhantes negociações para a capitulação a favor dos governantes muçulmanos. Ora, é bem provável que os governantes de Ossónoba tenham procedido do mesmo modo, de maneira a salvaguardarem os seus interesses, pois temos conhecimento das facilidades concedidas a cidades como Santarém ou Coimbra, tomadas por capitulação.

 De um modo geral, o mais provável é que tanto a cidade como a região de Ossónoba tenham sido anexadas depois de conquistado o núcleo urbano de maior importância, ou seja: Sevilha. Por outro lado, se a conquista de Sevilha se deu efectivamente em Julho/Agosto de 712, é possível que a região do Algarve tenha sido anexada por capitulação no mesmo verão, razão pela qual aqui assinalamos, simbolicamente, os 1300 anos do início do domínio islâmico na região do Algarve.



Jornal Postal do Algarve, Nº1085, 3 de Agosto de 2012, p.9.

sábado, 4 de agosto de 2012


O Baixo Guadiana e Alcácer Quibir




         O dia 4 de Agosto de 2012 assinala os 434 anos de um dos episódios mais catastróficos da História de Portugal: a Batalha de Alcácer Quibir, conhecida em Marrocos como Batalha dos Três Reis (em árabe: ك الثلاث). Com a obsessiva ideia de D. Sebastião para a conquista de Marrocos – ideia já abandonada desde a reformulação da estratégia norte africana de D. João III -, o Algarve volta a captar as atenções da Coroa portuguesa. Com efeito, a “Relação da jornada de El-Rei D. Sebastião quando partiu da cidade de Évora – feita pelo cronista João Cascão”, dá-nos conta da primeira viagem de D. Sebastião ao Algarve, em 1573. O monarca não só inspeccionou as obras das fortificações para a defesa das costas algarvias contra a pirataria magrebina, como também estudou as condições estratégicas, geopolíticas e militares que permitissem uma campanha militar em Marrocos, onde Portugal conservava Ceuta e Tânger, a norte, e Mazagão, a sul. Já nas Cortes de 1562-1563 se determinava “que no Algarve se fação Fortalezas, onde parecem necessárias” e, de facto, a região do baixo Guadiana recebeu a visita do jovem monarca português uma década depois, verificando in loco o estado das fortalezas. Segundo o cronista João Cascão, D. Sebastião “veio ao longo da praia ver uma fortaleza, que está pegada com o mar, a duas léguas de Tavira, chama-se esta fortaleza Cacela”, passando depois a Castro Marim, onde visitou o castelo na companhia do Alcaide-Mor da Vila, António Melo (D. Sebastião visitou também Santo António de Arenilha e Ayamonte).

No entanto, um outro objectivo se prendia com a visita do Desejado: verificar como se cumpria o sistema das ordenanças no que se referia ao treino e serviço militar dos homens que as compunham, pois segundo a legislação em vigor a partir de 1569 – 1570, cada concelho deveria apresentar uma companhia de ordenanças, sob o comando de um capitão-mor. De facto, para além dos estrangeiros e dos mercenários contratados, foi exactamente do sul alentejano e do Algarve que saíram os principais contingentes destinados à malograda expedição de Alcácer Quibir. Nas ordenanças apresentadas a D. Sebastião aquando da sua visita ao baixo Guadiana, Castro Marim apresentou “duas bandeiras de Ordenança” (400 homens), tal como Alcoutim, que apresentou “duas bandeiras de Ordenança, as quais chegando-se a El-Rei fizeram uma salva de arcabuzaria”. Ora, este acaba por ser um número considerável se tivermos em consideração que Castro Marim, por exemplo, apresentava por essa altura uma população que rondava os duzentos e cinquenta “vizinhos”, ou seja: por volta de 1000 habitantes! Postos estes números podemos tirar uma de duas conclusões: ou o cronista João Cascão exagerou no número de homens de armas apresentados ao rei, ou praticamente todos os homens capazes de pegar em armas estavam integrados nas companhias de ordenanças! Se assim o é resta-nos uma última questão de difícil resposta: dos cerca de 9000 homens que perderam a vida na desastrosa batalha de Alcácer Quibir, quantos seriam provenientes da região do baixo Guadiana?



Jornal do Baixo Guadiana, Nº147, Agosto de 2012, p.21.

As Ordenanças do Algarve e Alcácer Quibir




          Muitos são os episódios da História de Portugal que passaram à posteridade graças aos gloriosos feitos dos portugueses. Outros episódios, porém, persistem nas brumas da memória colectiva pelas piores razões. Um desses episódios teve lugar no dia 4 de Agosto de 1578, pelo que o presente mês de Agosto de 2012 assinala os 434 anos de um dos mais funestos desastres da História de Portugal. Trata-se da batalha conhecida em Marrocos como Batalha dos Três Reis (em árabe: ك الثلاث), mais conhecida em Portugal como Batalha de Alcácer Quibir, a mesma batalha onde cerca de 9000 homens perderam a vida. E o Algarve? De que maneira esteve envolvido nesse funesto episódio? De que maneira ficou afectado?

A verdade é que com o abandono de Safim, Azamor, Arzila e Alcácer Ceguer, no reinado de D. João III, a prosperidade do Reino do Algarve começou a declinar. Tavira, que na primeira metade do séc. XVI chegou a ter 3500 fogos, ou “vizinhos”, já se encontrava muito despovoada nos anos 70 da mesma centúria, não tendo por essa altura mais de 1500. Ora, com o obstinado plano de D. Sebastião para a conquista de Marrocos, o Reino do Algarve voltou a captar as atenções da Coroa portuguesa. Com efeito, a “Relação da jornada de El-Rei D. Sebastião quando partiu da cidade de Évora” do cronista João Cascão, dá-nos conta da viagem de D. Sebastião ao Algarve, em 1573. Durante esta viagem o monarca não só inspeccionou as obras nas fortificações para a defesa da costa algarvia, como também estudou as condições estratégicas, geopolíticas e militares que permitissem uma expedição militar em Marrocos, onde Portugal conservava Ceuta, Tânger e Mazagão. Já nas Cortes de 1562-1563 se determinava “que no Algarve se fação Fortalezas, onde parecem necessárias” e, de facto, o Reino do Algarve recebeu a visita do Desejado uma década depois, verificando in loco o estado das estruturas defensivas em cidades e vilas como Aljezur, Lagos, Sagres, Albufeira, Loulé, Faro, Tavira, Cacela, Castro Marim e Alcoutim. No entanto, um outro objectivo se prendeu com a visita do jovem monarca português: verificar em que condições se cumpriam o sistema das ordenanças no que se referia ao treino e serviço militar dos homens que as compunham, pois segundo a legislação em vigor a partir de 1569 – 1570, cada concelho deveria apresentar uma companhia de ordenanças, que deveria exercitar-se todas as semanas, Domingos e dias santos.

Para além dos soldados estrangeiros e dos mercenários contratados, foi exactamente do sul de Portugal, nomeadamente do Alentejo e Algarve, que saiu parte significativa dos contingentes destinados à desastrosa expedição de Alcácer Quibir. E porquê esta predilecção do monarca pelos homens do sul? A resposta é simples. Os algarvios estavam mais habituados às guerras com os mouros no Norte de África. Basta recordarmos o grande cerco a Mazagão de 1562 e a forma destemida como os algarvios foram em socorro daquela praça. Além disso, os algarvios eram “inclinados a pelejar (…) e muito leais a quem servem”, como astutamente observou Henrique Fernandes Sarrão anos mais tarde, em “História do Reino do Algarve”. Ora vejamos: só aquando da visita de D. Sebastião a Tavira, em 1573, foram apresentadas “sete bandeiras de Ordenança”, ou seja: 1400 homens, numa altura em que a cidade estava “muito despovoada” e não tinha mais de 1500 “vizinhos”. Em Faro foram apresentadas ao monarca “nove bandeiras de Ordenança”, ou seja; 1800 homens, numa altura em que se contavam na cidade 1800 “vizinhos”. Ora, se tivermos em consideração que cada “vizinho” era composto por uma média de quatro pessoas, rapidamente chegamos à conclusão que praticamente um quarto da população de Tavira ou Faro estava incorporado nas companhias de ordenanças. Por outras palavras, se excluirmos mulheres, crianças e idosos, bem podemos concluir que estavam incorporados praticamente todos os homens capazes de pegar em armas…

Naturalmente que nem todos estes homens foram recrutados para a malograda expedição a Alcácer Quibir, pois sabemos que o terço do Algarve comandado por Francisco de Távora contou com uns 2000 homens. Ainda assim, e postos estes números, põe-se uma outra questão de difícil resposta: dos cerca de 9000 homens que perderam a vida na desastrosa batalha de Alcácer Quibir, quantos seriam provenientes do Algarve?


Jornal do Algarve, Nª2888, 2 de Agosto de 2012, p.16.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Sobre o corso e a pirataria magrebina no Algarve





                                                                                                                   
Com a conquista de Faro, Loulé, Albufeira e Aljezur, no reinado de D. Afonso III, dá-se o culminar da reconquista cristã no Algarve, no ano de 1249. Com a nova configuração do mapa político, as comunidades de piratas do Norte de África passaram a fustigar as regiões costeiras do Sudoeste peninsular, nomeadamente o Algarve, saqueando as populações do litoral, destruindo a navegação costeira, e cativando cristãos em busca de eventuais resgates. No ano de 1332, por exemplo, uma armada de assaltantes magrebinos, reunidos em doze galés, saquearam os moradores de Lagos, levando alguns deles como cativos, para Marrocos. Em 1353, foi a vez da vila de Castro Marim ser invadida e saqueada e, entre 25 de Maio e 14 de Junho de 1385, um bando de salteadores muçulmanos irrompeu sobre Loulé e capturou um vereador do concelho municipal.

A organização da marinha de guerra tornou-se urgente como forma de contrariar o corso e a pirataria, então muito activos. Foi neste contexto que a coroa decidiu recorrer ao almirante genovês Manuel Pessanha, para liderar o processo das reformas indispensáveis à marinha portuguesa. Foram apreciadas várias tácticas e definidas estratégias como forma de retaliar os sucessivos ataques de navios magrebinos que não davam descanso aos algarvios e às suas actividades quotidianas, nomeadamente a faina piscatória. A nova e reestruturada marinha portuguesa não tardaria a afirmar-se, respondendo ao dinamismo que lhe era exigido: não só reprimir a pirataria muçulmana que assolava o Algarve, como também passando a assaltar as costas muçulmanas de Granada e de Marrocos.

D. Dinis, ao fundar a Ordem da Cavalaria de Jesus Cristo em Castro Marim, demonstrou a importância que atribuía à região do baixo Guadiana, pois era o Algarve a primeira linha de defesa contra o inimigo muçulmano do Norte de África. Ainda assim, continuaram as temíveis acções da pirataria magrebina nas costas do Algarve. Ainda nos primeiros anos do séc. XV, a cidade de Lagos foi novamente assaltada, sendo os sinos da igreja levados para Ceuta, como troféu. A resposta portuguesa não tardaria, e logo em 1415, D. João I conquista Ceuta, levando a cruzada cristã para solo marroquino. Em breve o Algarve ganharia um importante papel no contexto nacional, na defesa e abastecimento do Algarve Dalém Mar. No entanto, apesar da presença portuguesa nas praças do norte de África, o Algarve não deixou de ser incomodado pela pirataria moura. Basta-nos recordar que Santo António de Arenilha foi despovoada nos inícios do séc. XVII, não somente devido ao avanço das águas do mar, como também em virtude das investidas da pirataria magrebina. Foi somente em 1774, depois de Portugal ter abandonado a última possessão portuguesa em território marroquino (Mazagão), em 1769, que foi assinado o Tratado de Paz entre Portugal e Marrocos que viria a pôr termo ao corso e a incrementar as relações diplomáticas e comerciais entre Portugal e Marrocos.



Jornal do Algarve, Nº 2842, 15 de Setembro de 2011, p.15.