sexta-feira, 27 de julho de 2012

Ibn Darraj al-Qastalli, poeta de Cacela



O poeta Ibn Darraj nasceu em Março de 958, na então "cidade" de Cacela (Qastalla) sendo-lhe por isso atribuído o epípeto al-Quastali. Segundo o catedrático de História Medieval e Presidente da Fundación al-Idrisi Hispano Marroqui, Ahmed Tahiri, foi o sétimo bisavô do poeta, de nome Darraj quem fundou a povoação de Cacela após a conquista do al-andaluz pelas tropas árabes e berberes comandadas por Tarik Ali Ibn Zyad, no ano de 711. A Cacela (Qastalla) do período islâmico viria a ser o primeiro aglomerado de carácter urbano situado a Sudeste do actual Algarve, tendo vindo a ganhar particular importância em meados do século X, durante a vida de Ibn Darraj.

 A verdade é que a vida e obra deste poeta é bastante elucidativa da realidade social, cultural e política do Gharb al-Andaluz de então. Graças ao seu prestígio literário, Ibn Darraj é incorporado na corte de Córdova, em 992, na qualidade de poeta oficial e escritor redactor do Estado califal do poderoso Almançor, no entanto, com os distúrbios resultantes das revoltas políticas e da guerra civil, o poeta vê-se forçado a abandonar a cidade em 1012, procurando depois protecção em Ceuta, Almeria, Denia, Valênia e Tortosa, concluindo a sua errância na capital taifa de Zaragoça, em 1017. Em Zaragoça, o poeta inicia uma nova etapa como poeta oficial da corte, criando vários poemas cuja nostalgia remete-nos para a grandeza da Córdova califal e as memórias da sua infância e juventude em Cacela. Em 1028 Ibn Darraj abandona Zaragoça e instala-se em Valência e posteriormente em Denia, onde viria a falecer em 1030. A obra poética deste autor, tão admirada por diversos orientalistas de várias nacionalidades, abrange, portanto, três importantes momentos da história do al-Andaluz: o esplendor do Estado califal, a guerra civil que se seguiu e o surgimento do período dos reinos taifas.

Com efeito, o livro Cacela e o seu poeta Ibn Darraj al-Qastalli, da autoria do já referido Ahmed Tahiri e publicado pela Câmara Municipal de Vila Real de Santo António, apresenta-nos não somente a biografia do poeta, como também a história da formação e origens de Cacela, desde o primeiro núcleo de povoamento, algures durante o século IX, até ao seu apogeu durante os períodos califal e taifa (de alçaria a Medina). Fica, portanto, o convite para a leitura de Cacela e o seu poeta Ibn Darraj al-Qastalli, pois mais que um livro sobre a história de Cacela e do seu poeta, a presente publicação é um testemunho do património histórico e cultural de Cacela e de todo o Gharb al-Andaluz. 


Jornal do Baixo Guadiana, Nª 134, Julho de 2011, p.27.

sábado, 21 de julho de 2012

O Algarve nas Fontes da Antiguidade


                                                                                                         
No âmbito do mestrado em História do Algarve, optei por debruçar-me sobre “O Algarve nas Fontes da Antiguidade” para a unidade curricular de “Algarve Pré-histórico e Romano”. No decorrer do respectivo estudo compreendi que foram vários os escritores da antiguidade, gregos e latinos, que escreveram sobre a Ibéria ou Hispânia, obras de carácter geográfico, histórico ou etnográfico. Para tal serviram-se das suas viagens, experiências pessoais, recolha de notícias ou recorrendo a outras fontes mais antigas, como o fez Rufus Festus Avienus, que apesar de ter vivido no séc. IV d. C., utilizou uma fonte muito antiga; o relato de um périplo massaliota do séc. VI a. C.
Autores anteriores à era cristã, como Herodoro de Heracleia, Eforo e Artemidoro, dão-nos informações respeitantes ao Algarve proto-histórico, mais precisamente ao período da colonização cartaginesa. Indicam os seus limites, os acidentes da costa, o nome dos seus habitantes, (Cynetes e Conoi) e referem-se a um culto praticado no Cabo Cinético ou Promontorium Sacrum (Cabo de São Vicente).
Por outro lado, os autores do período romano, como Estrabão, Plínio o Velho, Pompónio Mela ou Cláudio Ptolomeu, caracterizam a cultura dos povos que habitavam o território a Oeste do rio Anas., incluindo nestas descrições as suas riquezas naturais e economia de cidades como Baesuris (Castro Marim), Balsa (Luz de Tavira) ou Ossonoba (Faro).
Grosso modo, podemos afirmar que estas fontes debruçaram-se sobre a orla marítima que se estende desde a embocadura do Guadiana até ao Cabo de São Vicente, ou seja, o actual Algarve, do qual por vezes nos oferecem interessantes descrições e extremamente úteis para o estudo da história da região algarvia, num período compreendido entre o final da Idade do Bronze e a II Idade do Ferro. Estas referências, que vão desde a simples alusão a uma descrição pormenorizada, revestem-se do maior interesse, pois em muitos casos são as únicas notícias referentes a factos, costumes e situações que a História e a Arqueologia nem sempre comprovaram. Consideradas deste modo, constituem fontes de indiscutível valor para a historiografia dos povos que habitaram a nossa região e uma interessante leitura para todos os algarvios em geral.

Jornal do Baixo Guadiana, Nª 133, Junho de 2011, p.21.


Da fundação de Vila Real de Santo António


   

A fundação de Vila Real de Santo António, a maior e mais significativa realização iluminista efectuada em Portugal, resultou da estratégica política, económica e territorial concebida pelo Marquês de Pombal, em finais de 1773, visando a afirmação do Estado Português face ao Estado Espanhol. Já em 1982 dizia o Prof. Doutor José Eduardo Horta Correia na Comunicação apresentada no 2º Simpósio de Urbanismo e História Urbana, em Madrid: “Vila real de Santo António, construída em 1774 num areal desértico perto da foz do Guadiana, constitui um exemplo muito interessante de urbanismo iluminista e o único caso de edificação de uma cidade «ex-voto» da época pombalina, depois da reconstrução de Lisboa de 1755”.
Com efeito, a edificação da cidade foi bastante rápida; em 17 de Março de 1774 foi lançada a primeira pedra e no dia 6 de Agosto do mesmo ano já estavam terminadas as Casas da Câmara e da Alfândega, e começava-se a construção da igreja. Os edifícios foram construídos da mesma forma que os da baixa de Lisboa, à base de peças pré-fabricadas que depois eram aplicadas no local, tornando a construção mais rápida e uniforme. A cidade desenvolvia-se numa malha urbana ortogonal perfeita, centrada na Praça Marquês de Pombal. Uma grande marginal percorria as várias centenas de metros que separavam o aglomerado urbano do rio Guadiana. A nova vila iluminista, voltada estrategicamente para Espanha, viria a ser inaugurada a 13 de Maio de 1776, assinalando o aniversário de Sebastião José de Carvalho e Melo e reforçando a barreira natural que marca a divisão política e administrativa de uma fronteira que remonta à segunda metade do século XIII, aquando da conquista do Reino do Algarve aos Mouros por D. Afonso III.
Deste modo, a nova vila régia desempenharia as funções do extinto aglomerado populacional de Santo António de Arenilha, povoação criada através de uma antiga Carta de Privilégio concedida por D. Manuel em 8 de Fevereiro de 1513 e despovoada nos inícios do séc. XVII em virtude das investidas da pirataria moura e da ameaça do avanço das águas do mar. Por outro lado, a fundação da nova vila régia impediria também o contrabando, a evasão fiscal, e a livre pesca castelhana praticada no mar de Monte Gordo, permitindo ao Estado português o aproveitamento das potencialidades internas da região e aumentando a produção nacional através do Plano de Restauração do Reino do Algarve.       

Jornal do Baixo Guadiana, Nª 132, Maio de 2011, p.25.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

A Singularidade Patrimonial do Algarve



                                                                  
O Algarve destacou-se desde sempre no contexto nacional, não apenas por se tratar de uma região marginal e periférica, mas também pela sua singularidade cultural, histórica e patrimonial. A própria designação, Al Gharb, denuncia a única região do país com topónimo de origem árabe. Esta designação, que significa “o ocidente”, passou a referir-se à região sudoeste da Península Ibérica a partir de 711, aquando das invasões árabes e berberes da Península Ibérica lideradas por Tarik Ali Ibn Zyad. Desta forma, o Gharb designava um território, com limites algo imprecisos, a ocidente do território compreendido como Al Andaluz.
No decurso da conquista cristã, o Gharb acaba por ser conquistado aos mouros. D. Sancho I, em 1189, chega a conquistar Silves aos almóadas com o auxílio dos cruzados com destino à Terra Santa, no entanto, os mouros voltam a reconquistar a cidade em 1191. A conquista definitiva do Algarve dá-se no reinado de D. Afonso III, em 1249, com a conquista de Faro, Loulé, Albufeira e Aljezur, depois da Ordem de Santiago, através da acção de D. Paio Peres Correia, já ter conquistado Mértola, Alcoutim, Ayamonte, Castro Marim e Cacela nos anos anteriores. Com o Tratado de Badajoz de 1267, Afonso III de Portugal e Afonso X de Castela definem as fronteiras dos dois reinos, passado a fazer parte integrante da coroa portuguesa os territórios conquistados a ocidente do Rio Guadiana. No entanto, as divergências que continuaram a subsistir só viriam a ser resolvidas entre D. Dinis de Portugal e Fernando IV de Castela através do Tratado de Alcañices, em 1297.
         A verdade é que os cinco séculos de domínio islâmico no Algarve deixaram profundas marcas nos mais variados domínios da “cultura algarvia”. Podemos encontrar vestígios da ocupação islâmica no património linguístico, artístico, arquitectónico e arqueológico, o que, do ponto de vista patrimonial, revela a singularidade da região no contexto cultural português, tornando-se, portanto, imperativo a salvaguarda do mesmo património de modo a preservar o carácter excepcional que a região tem à escala nacional. A defesa, salvaguarda e valorização do património histórico do Algarve num momento em que o mundo enfrenta os preocupantes efeitos da globalização, é mais que uma mera necessidade estratégica; trata-se de uma imperativa responsabilidade das autarquias, das entidades culturais competentes e de todos os algarvios em geral.

Jornal do Baixo Guadiana, Nª 131, Abril 2011, p.21.

terça-feira, 10 de julho de 2012

Mazagão no Algarve d'Além Mar - Património da Humanidade até Quando?





No âmbito dos conhecimentos adquiridos ao longo da licenciatura em Património Cultural, decidi, para tema de monografia de seminário, abordar a história da praça de Mazagão no contexto da expansão portuguesa para o Norte de África. Fundada em 1513, no contexto do espírito de cruzada invocado pela dinastia de Avis, foi uma das mais importantes praças que Portugal possuiu no Algarve de Além Mar e, aquela em que os portugueses mais tempo subsistiram (desde 1513 a 1769), quando numa profunda alteração da estratégia colonial, o Marquês de Pombal manda transferir toda a população da cidade para Nova Mazagão, no Brasil.
Esta antiga possessão portuguesa, enquanto herança patrimonial edificada, é uma praça precocemente moderna, um exemplar de arquitectura militar do Renascimento, construída no contexto da reformulação da estratégia Norte Africana de D. João III. Trata-se do primeiro grande baluarte construído fora da Europa e em espaço do império português, projectado por Benedetto de Ravena e construído pelo mestre-pedreiro, João de Castilho, segundo os princípios do sistema abaluartado “à italiana”. Assim sendo, um autêntico bem patrimonial que testemunha a dura realidade em que os portugueses subsistiram nas praças lusas do Norte de África e o paradigma da herança cultural e arquitectónica que os portugueses deixaram em Marrocos.
A metodologia de trabalho utilizada para esta monografia de seminário baseou-se, para além necessária recolha bibliográfica sobre o assunto, num estudo in loco, de modo a recolher bibliografia marroquina existente e a visualizar e documentar o estado das estruturas desta antiga possessão portuguesa. O resultado deste estudo foi, infelizmente, assinalado pela decepção subjacente à busca das fontes locais e ao lamentável estado em que se encontra este monumento. As investigações realizadas no terreno, junto das entidades culturais da região, revelaram-se um lamentável fracasso pautado quer pela quase total inexistência de bibliografia marroquina, quer pela ignorância da população local relativamente às eventuais informações que poderiam ser facultadas pela tradição oral. Da experiência do estudo in loco, acabo, inevitavelmente, por concluir que a grande generalidade dos marroquinos não tem noção do valor patrimonial deste monumento de interesse histórico, arquitectónico e arqueológico, classificado pela UNESCO, em 2004, como património da humanidade.
Da fortaleza, o que melhor se encontra conservado são os muros, os baluartes e a cisterna. O traçado das ruas sofreu variadas modificações sem, no entanto, perder a toponímia portuguesa. Do castelo manuelino subsistem ainda restos das torres e as galerias. De todas as construções de cariz religioso restam apenas duas igrejas; a Igreja de Nossa senhora da Assunção e a Capela de São Sebastião. Infelizmente, os elevados níveis de degradação no interior da fortaleza e a abundante lixeira a céu aberto que os actuais moradores da “cité portugaise” tão orgulhosamente insistem em preservar são o espelho do vergonhoso estado em que este monumento se encontra. Os edifícios civis encontram-se num lamentável estado de degradação e modificados em relação ao traçado português. No que se refere ao espólio arqueológico, alguma epigrafia e outros restos de material bélico encontram-se guardados numa espécie de “núcleo museológico”, instalado numa galeria do edifício do antigo castelo, para além dos poucos canhões portugueses que miraculosamente subsistem nos baluartes.
Grosso modo, o lamentável estado de conservação verificável no interior da fortaleza de Mazagão, classificada pela UNESCO como património da humanidade, é uma situação que nem honra os antepassados marroquinos que lutaram contra o invasor português, nem prestigia as instituições marroquinas, alegadamente responsáveis pela preservação e defesa do património, como o Centre du Patrimoine Luso-Marrocain, organismo dependente do Ministère de la Culture do reino de Marrocos.
Dadas as circunstâncias, coloca-se uma questão: até quando conseguirão as entidades responsáveis marroquinas manter o estatuto de Mazagão enquanto Património da Humanidade? Será a fortaleza de Mazagão um caso pontual ou tratar-se-á antes do triste fado dos demais monumentos de origem portuguesa no mundo, mesmo quando supostamente protegidos ao abrigo da classificação da UNESCO? É uma questão que deixo no ar…

Jornal do Algarve Magazine, Nº2805, 30 de Dezembro de 2010, p.16.

Câmara Municipal de Faro desvaloriza Património Arqueológico



                                    




As investigações da arqueóloga Teresa Gamito, reputada professora e investigadora conhecida internacionalmente, em muito contribuíram para aprofundar o nosso conhecimento acerca da história das várias civilizações que, desde a proto-história, habitaram o espaço geográfico correspondente à actual cidade de Faro.

Estas investigações começaram em Abril de 1984, com uma escavação de emergência no cemitério romano na Rua das Alcaçarias que, naturalmente, vieram a comprovar a riqueza patrimonial e arqueológica existente no centro histórico da cidade. Os anos que se seguiram foram pautados por várias escavações no centro Histórico de Faro, nomeadamente na Horta da Misericórdia, junto ao Museu Municipal, entre 1993 e 2001. Entre o espólio arqueológico recolhido da Horta da Misericórdia encontram-se inúmeros materiais representativos da presença islâmica na cidade, nomeadamente, cerâmicas de grande interesse e até um fragmento de candelabro de mesquita! As estruturas descobertas revelam um bairro islâmico com uma utilização criteriosa do espaço; casas simples e pequenas, ruelas estreitas e algumas dependências de utilidade pública, nomeadamente uma cisterna com a sua área de lavagem de roupa e um lagar.
No entanto, não obstante a importância destas descobertas arqueológicas e o impacto que estas poderiam ter no âmbito do turismo local, é intenção da Câmara Municipal de Faro aproveitar a chamada Horta Misericórdia para criar 12 hortas de 40 metros quadrados! Segundo a autarquia, o objectivo passa por fomentar a agricultura biológica e chamar a atenção para as questões ambientais nas cidades. Ora, é absolutamente inconcebível que a escolha do local para tão ecológicas preocupações recaia exactamente num local de inquestionável valor histórico e patrimonial. Os americanos, mais pobres que os europeus no que se refere ao património, compram claustros inteiros e reconstroem-nos na América. Nós, que temos património, temos destas atitudes incompreensíveis, típicas de um país subdesenvolvido em que as querelas partidárias se sobrepõem aos valores defendidos na própria Constituição da República! É lamentável que nenhum dos autarcas que, ao longo de 20 anos passaram pela Câmara de Faro, tenham compreendido que seria do interesse estratégico da autarquia e dos empresários farenses, a aposta na reabilitação do sítio arqueológico da Horta da Misericórdia, tornando-o visitável e fomentando assim o turismo cultural na capital do Algarve.
No final acabamos todos por perder: perdem os turistas por se verem privados de visitar um sítio de inquestionável interesse histórico, perde o comércio e a restauração por verem o negócio privado do turismo e perdemos todos nós que ficamos ainda mais pobres do ponto de vista histórico, cultural e patrimonial. E que ficamos a ganhar? Um par de couves e cenouras…

Jornal do Algarve, nº2801, 02 de Dezembro de 2010, p.16.